8 de mar. de 2015

Amélie

Nunca em minha ainda curta vida, eu, verde e imberbe, cri na dita inspiração.
Intuía, pois, o fazer-poético apenas como sacro-ofício de abrir pergaminho sob
luz de vela e mergulhar pena em sangue para valsear àquelas fibras sentimentos
zaramelamente* à chance certeira de golpear no espírito algum vão outro eu
inconsciente errante do existir. Cada alexandrino que me escorria a mão era
lispectoriano; afinal, versos meus. Todavia, sem a quem nem por quê, eu ouvia.
Eis que ao fim do recitar a leitora cativada em choro perguntava pela musa.
“Ninguém” eu respondia. “Deveria ser-me alguém um bom motivo ao coração?”
“Evidente, meu poeta! Pois não pode haver mel sem abelhas, cruz cristã sem orbe,
lótus sem vida eterna, Alcorão sem xeque e perdoar sem prévios ferimentos;
assim deves ser tu também causalidade essencial a quem te tem e a quem é teu.”
Rumei, portanto, atrás dessa condenação de morte por reticência e etecetera.
Aonde, porém, eu teria de ir reclamar criação se a agulha do destino mal me tecia?
Noites de agonia de monarca ou ladrão que (só) ao fim das horas se escusa,
já que nem literatura alheia me limava. Senti-me o Éden da divina punição...
Então sentada ao balancinho que pendia de um caramanchão de lírio e sebe
irradiava uma moça em chita rosa, cabelos chanel, íris de raros pigmentos,
riso de minguar lua crescente; não Capitu de Escobar, mas Marília d’eu-Dirceu.
“Amélie, meu senhor” deu-me a mão e revelou-se a deusa em terra que se pusera
dia após dia a se embalar a minha esquina quando aos lusco-fuscos já fulgia
o céu de astros testemunhas do porquê. Minha poesia — antes perfeita, mas obtusa:
sensível de menos, vazia demais, farsante deveras — agora sofre de motivação
sem cura, como o torpor de quem cai em evitável profundo poço de paixão e o bebe
a dois transtornados goles compulsórios. Porque ela me alimenta, dias sedentos
não mais me são problema, posto que a tolice da mera rima pela rima evanesceu.
Toda estrofe em honra e cada prosa em glória à Amélie. Fim. P.s.: quem me dera
os meus ouvidos jamais descobrirem que depois dos muros de meu quarto não havia
sequer o caramanchão com balanço e, dentro de mesma vil cela, uma cabeça confusa.


de Mergulhão
à Laranjinha

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* zaramelo (adj.): gago

Um comentário:

  1. Meu eterno leãozinho, muito obrigada pelo carinho e pela oportunidade de prestigiar cada texto seu, és minha inspiração para criar... Te adoro e me sinto privilegiada em ter tua amizade, meu autor, chato e confidente favorito. 😍😘

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– – – – – – – – – – – – – – – – – – o que viu nessa estrada?