11 de nov. de 2013

Melaço

Bom frio é aquele em que cabe conchinha.
E assim desejos se aquentam
no côncavo em beijo ao convexo.
Torpe é o calor em que corpos se melam
por mero porquê desconexo.
Nus no frio, não: sua-se porque se quer.
Onde se quer.
Sabendo querer.
Um corpo em chama é o papiro
que a pena do amor
a pele preenche de rimas.
Vem pro meu suor que te mostro o poeta que sai desse mel.

Mergulhão

10 de nov. de 2013

Jantar

Charles se acostumara a viver sem os pais. A mãe, secretária de senador; o pai, assistente social de hospital público. Não havia tempo para o menino. A família sempre se esforçava para haver comunhão pelo menos durante os jantares.
Assim, depois de chegar da escola no meio da tarde, o menino se trancava em seu quarto, onde ouvia suas músicas em volume alto, atropelava pessoas no computador e compunha músicas de temática egoísta.
A psicóloga da escola ano passado dissera aos pais, quando enfim estes puderam se reunir, que não era sadio a um garoto de onze anos ter comportamento antissocial. Charles manteve os fones nas orelhas durante toda a discussão; ainda que nenhuma música escutasse, ele optara por ouvir tudo, repetindo mentalmente o mantra preferido.
Foda-se.
Foda-se aos colegas que ele socava no banheiro depois de o felarem. Foda-se aos pneus de carros de professores nos quais ele apagava bitucas diariamente até furar. Foda-se aos filhotes de gato que ele sufocava. Foda-se às janelas dos vizinhos que ele acertava com a Gamo de ar comprimido lançadora de dardos. Foda-se aos velhos a quem ele mostrava o pau na internet em troca de dinheiro. Foda-se ao diabo que diziam estar em suas letras.
Foda-se ao jantar. Teria de sobreviver a mais um.
A mãe bateu à porta de seu quarto. A mesa estava posta. O frango habitual. Charles não suportava mais frango. Era só o que a mãe comprava e punha à mesa. Toda noite o mesmo. Frango feito por outros. Feijão de lata. Purê sem gosto.
– Hoje a diretora me ligou dizendo que quer conversar com a gente – disse a mãe ao marido, servindo-o.
– O que você fez dessa vez, moleque? – perguntou o pai, antes de começar a comer.
O menino permaneceu calado, mentalizando o mantra.
– O que foi, Charles?!
– Foda-se.
– Olha essa boca! O que foi que eu já te falei, porra?! – berrou o homem.
Charles riu em deboche.
– Vamos comer. Amanhã a gente vai lá.
– Não posso amanhã, vai você.
Charles riu novamente.
– O que foi, moleque?! Quando você vai parar de dar trabalho pra mim, pra sua mãe?
– Foda-se você também.
O menino levou tapas do pai, subiu ao quarto, ligou o computador, som alto. A vida continuou.
Continuou sem o pai. Dois meses depois, descobriu-se que ele traía sua mãe com muitos colegas de trabalho. Como o pai nunca mais voltara para casa, os jantares agora eram só para dois. O mesmo frango para dois. Sobrava mais e em silêncio. Mas por poucos dias.
A mãe começara a levar para casa as pessoas do senado conforme se envolvia com elas. Todas duravam em média três semanas. Mal começavam a se intrometer na rotina dos jantares da casa e falavam que o menino não mais devia perturbar a mãe, que mudasse seus hábitos, que estudasse mais. Charles nunca os tolerou em casa. O mantra começou a ser frequente e audível.
Talvez por isso a mãe tivesse parado de jantar com o filho. Passou a deixar dinheiro na bancada da cozinha, debaixo do bilhete “para o jantar”, que nunca foi trocado. De vez em quando eles se viam pelos corredores aos fins de semana. O foda-se de Charles finalmente.
A mãe parou de voltar para casa à noite. Ou voltava com suas fodas temporárias apenas depois de Charles se trancar no quarto; o garoto não queria saber.
Charles desceu para contemplar a casa quieta. Era hora do jantar. Não seria frango, dessa vez. Foi à cozinha. Abriu o freezer. Revirou o que lá havia. Não seria frango. Pegou um pedaço de carne. Descongelou-o no micro-ondas. Fez purê, feijão. Foi à mesa só. Não gostou do que comeu. Ainda lhe lembrava frango habitual.
Preferiu o da mãe.
Então voltou ao freezer. Pegou a faca. Afastou o pai. Talhou a perna dela e descongelou o pedaço no micro-ondas.

Elano del Praga

5 de nov. de 2013

observe as lascas dos cristais

(para Rod, inestimável irmão das letras)


senhor dos vales sombrios, das florestas escuras repletas de monstros, daqueles quadros insanos cobertos de cores sonoras que exalam gritos gelados, observe as nuances refletidas nas pedras de quartzo cristalino e transparente. senhor das quimeras envolventes, esqueça das formas achatadas e beije as folhinhas que caem dos salgueiros chorões, finja que beijará as flores vaginais das virgens senhoras da corte profanada pelos homens erectus entumecidos pela dureza singela do teu aço.

caro mergulhão dos versos brutais e ruidosos, peixinho amargurado que caiu num aquário chamado docemente de realidade, observe essas lascas do passado e encontre-se no futuro suspirante com a memória de prosélitos alucinados. amado senhor das metáforas curvilíneas, amante dos bardos e paridor de poéticos versos desmoralizados que moralizam a alma dos vulgares normalizadores da imoral poesia ilusória e cúmplices das doenças da social hipocrisia humana. observa o meu louvor alado e desmascara o verso pobre desses loucos senhores despudorados.

observe as lascas dos cristais escuros. observe as lágrimas dos mortais homo-neandertalicus da contemporânea sociedade esquecida no tempo da virilidade opressora que não deseja evoluir na lavoura das frutinhas envenenadoras da imagem aparente. observa bem o tamanho dessas tuas escamas, peixe doce de voz serena e pensamento singular. observa bem o tamanho das espinhas que comem os lunáticos homens do amanhã divino. 

observa a tua nadadeira e diz sem tirar nem por o gosto da água salgada que cospem em tua face quando observam a tua angular verdade. diz-me a sorrir as cores dessas belas escamas que te recobrem o corpo nu. diz entre sonoras gargalhadas as cores da tua alma e o tamanho da tua alegria, amado amigo das letrinhas disformes que caem sem nexo no chão de concreto que os demasiado humanos cobrem de asfalto e excrementos verbais.

Lucy Nantes

3 de nov. de 2013

Um sonho para Lucy

(para Genniffer Moreira)


Lucy só queria dormir. Acessava o Youtube para digitar “som da chuva”, clicar nos vídeos de três horas de duração então lá listados, repousar a cabeça em Guido (seu urso de pelúcia), fechar os olhos e acordar qualquer dia depois de domingo. Mas ela não dormia. Devanear conscientemente lhe era um vício insone: a falsa chuva que o seu quarto inundava a afogava em mil desvarios. Logo pensava em guarda-chuvas coloridos, jambeiros molhados, crianças pulando em poças de lama, sapatos encharcados, cachorros encharcados e nuvens cinzentas em formato de cachorros de pelúcia encharcados trovejando. A chuva cessou enquanto Lucy imaginava alguma divindade barbuda jogar raios contra a Terra. Abriu os olhos, puxou o notebook para perto, digitou “som das ondas” dessa vez. Durante duas horas, Lucy criou um veleiro e com ele cruzou o Pacífico, fugiu de piratas, visitou Crusoé e guiou Nereidas perdidas. As ondas se tornaram silêncio e Lucy ficou a deriva em um nada azul. Já estava chateada e perturbada por ainda não ter dormido. Levantou-se e fez café. Ela não era como os fracos que se eletrizam sob café; ela era amante deste, não escrava. Café lhe era calmante e perfume há treze anos. Esquentou pães de queijo, comeu tudo, ligou a tevê em um canal alemão e foi para a cama. Ela não falava alemão, então isso em teoria seria o auxílio a encontrar a benção de Morfeu e, enfim, dormir. Mas Lars era alemão. Era; foi; ou é, caso o filho da puta ainda esteja vivo. Lars, aquele chucrute azedo em forma de filho da puta; o ex que lhe dera Guido. Claro que ela se atrevia em alemão! Ao menos as sonatas alemãs que a porcaria do programa exibia. Ao som da nona sinfonia e Für Elise de Beethoven, Lucy reviveu amores do pretérito nada perfeito. O peito peludo do chucrute azedo em forma de filho da puta, o pedido de Dante, Buenos Aires com Joaquim em agosto, a traição de Joaquim naquele mesmo agosto, Buenos Aires com Cecília naquele mesmo agosto – a propósito, os dois melhores tangos de sua vida –, a dor que ela causou por ter traído Cecília. Enfim. Pessoas se vão; parte do coração delas fica; partes dos de Lucy também. Mas hoje ela era outra mulher. Hoje ela seria. Levantou-se, acendeu um L.A mentolado, foi ao banheiro, olhou-se no espelho, despiu-se, sacou uma navalha e fez chanel de bico nos cabelos avermelhados. Arrumou-se e saiu. Não importavam as horas. O que eram as horas a quem passa os sonhos a transmutar tempo? Lucy compreendeu que não precisaria mais dormir. Para uma coruja, a vida é sempre a noite e à noite.
Lucy acordou. Sonhou que queria dormir.
Lucy acordou. Sonhou que acordava e queria dormir.
Lucy acordou. Sonhou que sonhava que acordou e queria dormir.
Lucy acordou.

Mergulhão

Sabiá-Uirapuru

Solitário no ninho
morava um sabiá
que não sabia cantar.
Como ser passarinho
sem ré, mi, fá, sol, lá?
Buscou quem lhe ensinar,
o mudo amarelinho.
Voou por Ceará,
Japão, Madagascar,
mas só teve acalanto
ao voltar ao seu galho
porque Sabiá ouviu
um doce e suave canto
vindo de um carvalho:
claro como um rio,
leve como o vento,
um uirapuru vermelho
cantava horas a fio.
Sabiá se aproximou
e lhe pediu lição.
Uirapuru amigo
o pequeno ajudou.
De tanta afinação,
cumplicidade e apego,
Sabiá se apaixonou;
abriu seu coração,
piou: “ Fica comigo
por muitas primaveras?”
e a emoção não coube
ao canto de resposta:
 Eu te amo deveras.
Te amo, sempre soube,
e nada mais me basta
que te amar por eras.
Não haverá quem roube
de, nosso amor, a nota.”.
Porém, um vil abutre
(vulgo: Mau Urubu)
aos dois amantes disse:
 Mas isso não se nutre!
Sabiá-Uirapuru?!
Amor sujo e tolice!”
e perfurou o ventre
do lindo Uirapuru,
que soou baixo e foi-se.
Assim viu-se sozinho,
voando baixo errante,
Sabiá em desamor.
Nunca mais fez ninho
nem retumbou contente;
perdeu, do canto, a cor.
Tornou-se o passarinho
dos bandos o mais triste,
desafinado em dor.

Mergulhão