(para Genniffer Moreira)
Lucy só queria dormir.
Acessava o Youtube para digitar “som da chuva”, clicar nos vídeos de três horas
de duração então lá listados, repousar a cabeça em Guido (seu urso de pelúcia),
fechar os olhos e acordar qualquer dia depois de domingo. Mas ela não dormia. Devanear
conscientemente lhe era um vício insone: a falsa chuva que o seu quarto
inundava a afogava em mil desvarios. Logo pensava em guarda-chuvas coloridos,
jambeiros molhados, crianças pulando em poças de lama, sapatos encharcados,
cachorros encharcados e nuvens cinzentas em formato de cachorros de pelúcia
encharcados trovejando. A chuva cessou enquanto Lucy imaginava alguma divindade
barbuda jogar raios contra a Terra. Abriu os olhos, puxou o notebook para
perto, digitou “som das ondas” dessa vez. Durante duas horas, Lucy criou um veleiro
e com ele cruzou o Pacífico, fugiu de piratas, visitou Crusoé e guiou Nereidas
perdidas. As ondas se tornaram silêncio e Lucy ficou a deriva em um nada azul. Já
estava chateada e perturbada por ainda não ter dormido. Levantou-se e fez café.
Ela não era como os fracos que se eletrizam sob café; ela era amante deste, não
escrava. Café lhe era calmante e perfume há treze anos. Esquentou pães de
queijo, comeu tudo, ligou a tevê em um canal alemão e foi para a cama. Ela não
falava alemão, então isso em teoria seria o auxílio a encontrar a benção de
Morfeu e, enfim, dormir. Mas Lars era alemão. Era; foi; ou é, caso o filho da
puta ainda esteja vivo. Lars, aquele chucrute azedo em forma de filho da
puta; o ex que lhe dera Guido. Claro que ela se atrevia em alemão! Ao menos as sonatas
alemãs que a porcaria do programa exibia. Ao som da nona sinfonia e Für Elise de
Beethoven, Lucy reviveu amores do pretérito nada perfeito. O peito peludo do chucrute
azedo em forma de filho da puta, o pedido de Dante, Buenos Aires com Joaquim em
agosto, a traição de Joaquim naquele mesmo agosto, Buenos Aires com Cecília naquele
mesmo agosto – a propósito, os dois melhores tangos de sua vida –, a dor que
ela causou por ter traído Cecília. Enfim. Pessoas se vão; parte do coração delas
fica; partes dos de Lucy também. Mas hoje ela era outra mulher. Hoje ela seria.
Levantou-se, acendeu um L.A mentolado, foi ao banheiro, olhou-se no espelho, despiu-se,
sacou uma navalha e fez chanel de bico nos cabelos avermelhados. Arrumou-se e
saiu. Não importavam as horas. O que eram as horas a quem passa os sonhos a transmutar
tempo? Lucy compreendeu que não precisaria mais dormir. Para uma coruja, a vida
é sempre a noite e à noite.
Lucy acordou. Sonhou que queria
dormir.
Lucy acordou. Sonhou que acordava
e queria dormir.
Lucy acordou. Sonhou que sonhava
que acordou e queria dormir.
Lucy acordou.
Mergulhão
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– – – – – – – – – – – – – – – – – – o que viu nessa estrada?