Charles se acostumara a
viver sem os pais. A mãe, secretária de senador; o pai, assistente social de hospital
público. Não havia tempo para o menino. A família sempre se esforçava para haver
comunhão pelo menos durante os jantares.
Assim, depois de chegar da
escola no meio da tarde, o menino se trancava em seu quarto, onde ouvia suas
músicas em volume alto, atropelava pessoas no computador e compunha músicas de
temática egoísta.
A psicóloga da escola ano
passado dissera aos pais, quando enfim estes puderam se reunir, que não era
sadio a um garoto de onze anos ter comportamento antissocial. Charles manteve
os fones nas orelhas durante toda a discussão; ainda que nenhuma música escutasse,
ele optara por ouvir tudo, repetindo mentalmente o mantra preferido.
Foda-se.
Foda-se aos colegas que ele socava
no banheiro depois de o felarem. Foda-se aos pneus de carros de professores nos
quais ele apagava bitucas diariamente até furar. Foda-se aos filhotes de gato
que ele sufocava. Foda-se às janelas dos vizinhos que ele acertava com a Gamo
de ar comprimido lançadora de dardos. Foda-se aos velhos a quem ele mostrava o
pau na internet em troca de dinheiro. Foda-se ao diabo que diziam estar em suas
letras.
Foda-se ao jantar. Teria de
sobreviver a mais um.
A mãe bateu à porta de seu
quarto. A mesa estava posta. O frango habitual. Charles não suportava mais
frango. Era só o que a mãe comprava e punha à mesa. Toda noite o mesmo. Frango feito
por outros. Feijão de lata. Purê sem gosto.
– Hoje a diretora me ligou
dizendo que quer conversar com a gente – disse a mãe ao marido, servindo-o.
– O que você fez dessa vez,
moleque? – perguntou o pai, antes de começar a comer.
O menino permaneceu calado, mentalizando
o mantra.
– O que foi, Charles?!
– Foda-se.
– Olha essa boca! O que foi
que eu já te falei, porra?! – berrou o homem.
Charles riu em deboche.
– Vamos comer. Amanhã a
gente vai lá.
– Não posso amanhã, vai
você.
Charles riu novamente.
– O que foi, moleque?!
Quando você vai parar de dar trabalho pra mim, pra sua mãe?
– Foda-se você também.
O menino levou tapas do
pai, subiu ao quarto, ligou o computador, som alto. A vida continuou.
Continuou sem o pai. Dois meses
depois, descobriu-se que ele traía sua mãe com muitos colegas de trabalho. Como
o pai nunca mais voltara para casa, os jantares agora eram só para dois. O mesmo
frango para dois. Sobrava mais e em silêncio. Mas por poucos dias.
A mãe começara a levar para
casa as pessoas do senado conforme se envolvia com elas. Todas duravam em média
três semanas. Mal começavam a se intrometer na rotina dos jantares da casa e falavam
que o menino não mais devia perturbar a mãe, que mudasse seus hábitos, que
estudasse mais. Charles nunca os tolerou em casa. O mantra começou a ser frequente
e audível.
Talvez por isso a mãe
tivesse parado de jantar com o filho. Passou a deixar dinheiro na bancada da
cozinha, debaixo do bilhete “para o jantar”, que nunca foi trocado. De vez em
quando eles se viam pelos corredores aos fins de semana. O foda-se de Charles finalmente.
A mãe parou de voltar
para casa à noite. Ou voltava com suas fodas temporárias apenas depois de
Charles se trancar no quarto; o garoto não queria saber.
Charles desceu para contemplar
a casa quieta. Era hora do jantar. Não seria frango, dessa vez. Foi à cozinha. Abriu
o freezer. Revirou o que lá havia. Não seria frango. Pegou um pedaço de carne. Descongelou-o
no micro-ondas. Fez purê, feijão. Foi à mesa só. Não gostou do que comeu. Ainda
lhe lembrava frango habitual.
Preferiu o da mãe.
Então voltou ao freezer. Pegou a
faca. Afastou o pai. Talhou a perna dela e descongelou o pedaço no micro-ondas.
Elano del Praga
Nenhum comentário:
Postar um comentário
– – – – – – – – – – – – – – – – – – o que viu nessa estrada?